terça-feira, 17 de junho de 2008

Até quando?


Estou sempre, de uma ou outra forma, a comprar amor. Comprava sorrisos quando aqui e ali perdia alguém.
Bastava-me deixar correr as coisas para ser cumulada de elogios. Era efémero, transitório mas ainda assim agarrava-me de forma eterna. Dava tudo. Sempre respeitei toda a gente com a condição de me idolatrarem. E agradava-me desde que permanecesse platónico.O meu problema é antigo, como o de toda a gente: tento sobreviver a um abandono. E se pensasse antes de dizer o que penso, talvez dissesse menos disparates. Ou menos, simplesmente.



Descobri-te num desses instantes inexplicáveis que juntam as pessoas. E hoje, pensando bem, apesar de parecer, de facto, mais poético falar de destino, a simplicidade da nossa relação instaurara-se na circunstância, no acaso, na coincidência.
Construímos a nossa relação com conversas que se prolongavam pelos dias, e as noites foram atingindo proporções quase demoníacas. Estimulavas-me com os teus olhos e a tua boca grande, com os teus sonhos tão longe dos meus que me faziam crer nas tuas palavras e nos teus silêncios.
Era incapaz de trocar esta paixão pelo amor. Queria-me disponível para o novo e o imprevisto, para a imensidão da vida.
Mas eu não sabia nada. Nunca se sabe nada aos 20 anos.
Parecia-me faltar uma eternidade para a solidão e tu dizias sempre qualquer coisa "seja o que Deus quiser" enquanto me seguias na imensidão do desconhecido. Mas eu amava-te por te dispores a renunciar à ideia de alma gémea, como a colocar o teu território à disposição da minha felicidade.
E amava-te por me conheceres tão bem, por saberes que a minha crença de estar sozinha era apenas mais uma extravagancia que tinha que ver com tudo aquilo que não pude, que não consegui, com tudo aquilo que me faltava, que me deram a mais ou a menos.

Pensava ter o resto da vida para te encontrar e ganhar juízo. Mas não quero ser uma dessas pessoas que vive sem marcar ninguém e que morre sem deixar saudades.

Um dia pus a mochila às costas e decidi ir conhecer mundo



O comboio afastava-se da cidade sem cessar, e para trás deixava aquela sensação de tristeza que só os terminais encerram.
Não me recordo de ver o rosto de ninguém, nem sequer de acenos. Só a minha imagem reflectida no vidro, os olhos leitosos e o cabelo dourado a perder o seu brilho.
Parti sem remorsos, era tarde e o caminho descobria-se franco a cada viagem. Pensara que esta partida me impediria de alguma vez querer voltar. De tempos a tempos recordava-me de alguns momentos já tão longínquos.
A pouco e pouco, as fisionomias foram-se confundido, deixei de recordar tão distintivamente as pessoas e os sítios; desvaneceram-se alguns pormenores e as novas descobertas tomaram o lugar do passado.
Numa das minhas paragens encontrei um bilhete teu deixado na minha carteira. Pensei que eram mesmo coisas tuas. Suspirei e tremi compassadamente enquanto lia as palavras: « Um dia largamos tudo e fugimos.»
Vaguei Norte a Sul, só porque não tinha nenhum sitio onde pudesse permanecer sem me fartar e por não haver nenhum lugar para onde ir a não ser para todo o lado.



Hoje foi um dia cheio de pequenos nadas. Daqueles mais-que-evidentes que insistem em revelar a efemeridade da vida e do amor, que estou a tempo de mudar e de perdoar, que não devo deixar nada por dizer, e que não vale a pena temer o silêncio, porque tudo o resto não é senão um conjunto flutuante de palavras sonantes que insistimos em trocar sem nunca termos a certeza de estarmos a ser entendidos.


segunda-feira, 16 de junho de 2008

Poema


Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.


Sophia de Mello Breyner Andersen

O Funcionário Cansado


A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado de um dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música.
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isso todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só.


António Ramos Rosa





Não, acho que não quero saber


Sim, suponho que terá havido outros sinais, antes; ténues revelações, ou mesmo inconscientes declarações de intenções futuras; talvez. Contudo, é apenas agora, neste preciso momento em que, rotineiramente, te aproximas para me beijar, que percebo. Há algo no teu olhar, um brilho diferente, fulgurante e desafiador, um brilho autêntico e ostensivo que te denuncia: estás apaixonada.
E, no mesmo instante, enquanto te vejo fechar os olhos suavemente, enquanto sinto o breve toque dos teus lábios, aceito a irremediável verdade: sim, estás apaixonada. Uns segundos depois, quando já afastas o teu rosto, olhos ainda fechados, já tão distante, não resisto a perguntar-me: por quem?
Mas, na verdade, acho que nem quero saber.


Paulo Kellerman


Um terrível, desesperado e feliz silêncio



Esta crónica explica o meu gosto pela literatura, a forma como as palavras brotam de mim no papel, ainda que nada tenha a acrescentar. Este blog é apenas mais uma representação da imensidão de um crescente amor que não conhece limites.


No princípio de março acabo o meu romance, começado em junho de 2002. devia estar contente: é melhor, sozinho, que tudo o que publiquei até agora, somado e multiplicado por dez. durante vinte meses gastei nele praticamente as vinte e quatro horas de cada dia desses meses, escrevi-o desencantado, com vontade constante de destruir o que ia fazendo, sem saber bem para onde dirigis, limitando-me a seguir a minha mão, num estado próximo dos sonhos, e ao começar a revê-lo, surpreendido, pareceu-me composto.

não composto, ditado por um anjo, por uma entidade misteriosa que me guiava a esferográfica. Foram vinte meses num estado de sonambulismo estranho, descobrindo-lhe, durante as correcções, uma coerência interna que me havia escapado, uma energia subterrânea, vulcânica, de que me não julgava capaz. Devia estar contente: não estou. Em primeiro lugar porque nem um cisco de vaidade existe em mim. Sou demasiado consciente da minha finitude para isso, e muitas vezes recordo o que o advogado Howard Hughes, o milionário americano, respondeu ao jornalista, que logo após a morte do seu cliente, lhe perguntou quanto é que Hughes tinha deixado. O que o advogado disse foi

- Deixou tudo

e eu deixarei apenas, além de tudo, uns livros e, espero, alguma saudade nas poucas pessoas que me conheceram e fizeram o favor de gostar de mim. Nada mais. Em regra chegamos demasiado tarde a algum conhecimento da vida que de pouco nos serve. Uns livros. Este, que me devia deixar contente e não deixa. O que sinto agora, a uma ou duas semanas de acabá-lo, é um enorme enjoo físico do acto de escrever. Até junho ou julho não começarei outro romance porque me sinto exausto. E no entanto

(e é por isso que não estou contente)

aborrece-me ter, com sorte, talvez tempo para mais dois ou três livros antes que as águas se fechem definitivamente sobre a minha cabeça: eis a verdade. E esse facto aborrece-me. Acho injusto, dado que sinto em mim, com ganas de subirem à tona, não dois ou três livros mas uma mão cheia deles. Começo a ter uma ideia do que é escrever, começo a entender um pouco o que se pode construir com as palavras, começo, muito difusamente, a distinguir algumas luzitas ténues no profundo escuro da alma humana. E agora, que deveria começar, sinto e sei, na carne, o limitado espaço que me resta. Meu Deus, isto é frustrante: eu pronto a principiar e o tempo a fugir-me. Não faço a menor ideia qual será o livro seguinte, os livros seguinte e, no entanto, sinto-os vivos, dentro de mim, como o salmão deve sentir os ovos. Resta-me tentar que me saia do corpo o maior número possível. E penso em Maria Antonieta, já no estrado para o carrasco:

- Só mais um minuto, senhor carrasco.

Aí está: só mais um minuto senhor carrasco, só mais uns minutinhos senhor carrasco.

O destino de um artista é tremendo: ao vencer o tempo acabamos derrotados por ele, ou talvez seja mais certo ao contrário: apesar de derrotados pelo tempo vencemos? Ignoro a resposta. Sei que fiz o melhor que pude, que faço o melhor que posso, que tenho uma confiança cega na minha mão e na minha parte de trevas que é aquela que escreve. Não se escreve com ideias, não se escreve com a cabeça: é o livro que tem de ter as ideias, que tem de ter a cabeça. Eduardo Lourenço chamava-me a atenção de um verso do meu não caro Pessoa, “emissário de um rei desconhecido/eu cumpre informes instruções d’Além”, isto é o contrário do patetinha iluminado. E quem não entende que é outra coisa nada entende de literatura, e pior, nada entende da Vida. Entender é dar fé da unidade sobre a diversidade, do que existe de comum entre factos contraditórios. Não quero contar histórias, não quero explicar, não quero demonstrar nada. Quando escrevo quero apenas libertar-me do que escrevo e, se quisesse alguma coisa, seria apenas, se a isso fosse obrigado, dar a ver. Não mais do que esse tão modesto, tão ambicioso objectivo: dar a ver. Um livro são muitos livros, tantos quantos os seus leitores, é um pacto de sangue. Desconheço o que me trouxe a ele, não alcanço o menor vislumbre acerca do que me obriga a fazê-los. Se me perguntam

- O que é que quis dizer com este romance?

a resposta sincera é

- Não quis dizer nada

e não quis dizer nada porque me foi ditado. Isso terão de perguntá-lo a quem mo ditou. O meu trabalho consiste apenas em conseguir ouvir, e para conseguir ouvir dar-lhe tudo o que tenho. Sobra pouco para mim? Não tenho essa opinião. Tenho, antes, a de viver rodeado de pessoas vivas que se misturam com as pessoas vivas e quando não estou a escrever.

E se advertem

- Devias trabalhar menos

não entendo também: será isto trabalho? Não lhe chamaria trabalho. Honestamente não saberia o que chamar-lhe. Dá-me a sensação de ser a minha própria carne, as portas dos meus quartos fechados

(tantos quartos fechados)

dos meus quartos que nunca antes abri e me cegam com excesso de luz das suas janelas, dá-me a sensação, nos momentos felizes, de caminhar sobra as águas. Disse numa entrevista que me aconteceu com este livro o que antes nunca me tinha acontecido: eu, que sou um homem de olhos secos, escrevi a chorar. Não de tristeza, nada que se pareça com tristeza: uma espécie de júbilo, de exaltação absoluta, como, nunca antes, me sucedera, feita de ter tocado, ainda que durante segundos, a própria essência das coisas. Sem o haver merecido. Sem qualquer mérito meu. Somente porque o tal “rei desconhecido” do soneto de Pessoa, meu pouco amado escritor, resolveu dar-me essa esmola. Escrevi esmola e, depois de haver escrito hesitei: esmola não me soa bem e contudo é verdade. Despe-te não da vaidade que não tens, mas do orgulho a que ferozmente te agarras, porque é uma esmola de facto, e enche os teus livros, à custa de muito viveres com eles, de um terrível, desesperado e feliz silêncio.


Crónica de António Lobo Antunes
(Visão, 18 a 24 Março 2004, p. 15)