quinta-feira, 28 de agosto de 2008


Recordo a infantilidade dos teus gestos e das tuas palavras inseguras nos momentos fulcrais.
Tenho raiva de não ter guardado o teu sorriso quando dizias qualquer coisa tão vaga como: « Sou assim mas tu gostas. »
E como nem sempre sabias se era verdade empenhavas-te no sexo e naquilo a que gostavas de chamar intimidade.
Reconfortava-me a forma como olhavas para mim depois e as tentativas que fazias em me envolveres.
Querias que eu mergulhasse na tua interioridade num orgasmo desesperado.
Querias que permanecesse em ti.
E o sexo tornou-se num acto de vingança diabólica.
Um duelo erótico.
Agressivamente sexual.
Um duelo entre duas pessoas que já não se amam.


sexta-feira, 15 de agosto de 2008

amor, amor

'... Dás-me licença que te beije? Não? Não te vás embora ainda, deixa-te estar. Apesar de tudo passámos um bocado agradável, não foi? A mim agradou-me. Gosto do teu cheiro. Se te apetecer voltar toca a campainha três vezes e carrego naquele botão que abre a porta da rua. E se me avisares com antecedência compro um bolo. Quando não estiveres cá e me sentir sozinho como as migalhas que sobrarem. Vou contar-te um segredo: há alturas em que as migalhas ajudam.'

antónio lobo antunes


Sem título



Há perguntas fáceis de fazer e que têm respostas rapidamente esquecidas.
Há perguntas que recusamos fazer com receio de ouvir a resposta.

Viverei tempo suficiente para ver os meus filhos crescerem?
Estarei a cometer um erro ao casar com este homem?
Será ele capaz um dia de me amar?

E quando recebemos a resposta que queremos às perguntas que colocamos?


Pós-FCSH



Estavamos em 2004. Á entrada do território académico cruzava-me com o público que saía. Era uma massa de gente que levitava, de olhar perdido, a esforçar-se por regressar ao contacto com o mundo quotidiano. Esbarrava-me com uns quantos com a mesma expressão alheada mas com um sorriso imenso, infantil. Com aquele ar de não-entendo-muito-bem-a-onda-mas-sinto-que-faço-parte-de-algo-importante. E seria isso que poderia ser a definição para os meus anos como universitária.
Agora, no mundo exterior à FCSH, sinto o fracasso, não só não entendo nada como não quero entender, como suspeito não haver nada para entender. E pior, bem pior: não hã qualquer vestígio de estar a fazer parte de algo importante.
A realidade é circular, vazia, inconsequente. Onde antes havia mistério agora há absurdo, onde antes se alimentava uma tentativa de descobrir a própria identidade, mesmo sabendo que nunca seria encontrada, agora percebe-se, muito rapidamente que não há identidade alguma.
Ao longo destes anos fui confirmando que a vida não é para perceber, mas para sentir. E por vezes, sente-se mal. Sente-se náuseas. Pior que tudo, sente-se tédio.


Madame Bovary


O dia seguinte custou a passar! Ela passeou no jardinzito, passando e voltando a passar pelos mesmos caminhos, parando diante dos canteiros, diante da latada, diante do padre de gesso, olhando admirada para todas aquelas coisas que já antes tão bem conhecia. Como lhe parecia já ir longe o baile! Quem separava, então, a tamanha distancia, a manha de anteontem da tarde de hoje? A viagem de Vaubyessard cavara um fosso na sua vida, à maneira das grandes fendas que uma tempestade, numa única noite, cava as vezes na montanha. No entanto, resignou-se; fechou, com devoto cuidado, na sua cómoda, o belo vestido, e até os sapatos de cetim com a sola amarelecida da cera escorregadia do salão. Tinha o coração como eles: ao contacto com a riqueza, estivera sobre qualquer coisa que nunca mais se haveria de apagar.

A recordação daquele baile tornou-se então para Emma uma ocupação. Sempre que chegava a quarta-feira, pensava ela, ao acordar: «Ah!, faz hoje oito dias…faz hoje quinze dias…faz hoje três semanas, la estava eu!» E, a pouco e pouco, as fisionomias foram-se confundido na sua memoria, esqueceu a musica das contradanças, deixou de recordar tão distintivamente as librés e os aposentos; desvaneceram-se alguns pormenores, mas ficou-lhe a saudade.

Gustave Flaubert Madame Bovary


segunda-feira, 4 de agosto de 2008


abres o mapa da europa e
assinalas o lugar perdido junto ao mar - o sol
fulmina a narceja e o leite sábio das mães
coalhou num sabor a plâncton e húmus

na floreira da janela virada ao mar
secaram os goivos dos navegantes e um cardo amarelo
irrompeu hirsuto e firme - o tempo chuvoso
alastra pelas ruelas insinuando-se na alma
uma babugem grossa de mareisa - a europa afasta-se
com seus falhanços ao som dos tambores de água

recordas assim a noite varada à porta dos grandes frios
o corpo carbonizado que perdeu a nacionalidade
as cidades sem nome o acidente a auto-estrada
o recado deixado no café a cerveja entornada
o alarme da noite a fuga
a terra dos gelos eternos a viagem sem fim a faca
rente ao pescoço e os comboios e a ponte ligando
a treva à treva
um país a outro país - onde dissemos coisas que matam
e largam rastos de aço nas pálpebras

mas
no cansaço da torna-viagem no desalento de tudo
o mapa da europa ficou aberto no sítio
onde desapareceste

ouço o atlântico uivando de abandono
enquanto os dedos se cansam a pouco e pouco
na lenta escrita de um diário - depois
fecho o mapa e vou
pela crueldade desta década sem paixão



Mapa de O Medo
Al Berto

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Cena do Ódio


...

Larga a cidade masturbadora, febril,
rabo decepado de lagartixa,
labirinto cego de toupeiras,
raça de ignóbeis míopes, tísicos, tarados,
anémicos, cancerosos e arseniados!
Larga a cidade!

Larga a infâmia das ruas e dos boulevards,
esse vaivém cínico de bandidos mudos,
esse mexer esponjoso de carne viva,
esse ser-lesma nojento e macabro,
esse S ziguezague de chicote autofustigante,
esse ar expirado e espiritista,
esse Inferno de Dante por cantar,
esse ruído de sol prostituído, impotente e velho,
esse silêncio pneumónico
de lua enxovalhada sem vir a lavadeira!
Larga a cidade e foge!
Larga a cidade!

Vence as lutas da família na vitória de a deixar.
Larga a casa, foge dela, larga tudo!
Nem te prendas com lágrimas que lágrimas são cadeias!
Larga a casa e verás -- vai-se-te o Pesadelo!
A família é lastro: deita-a fora e vais ao céu!
Mas larga tudo primeiro, ouviste?
Larga tudo!

-- Os outros, os sentimentos, os instintos,
e larga-te a ti também, a ti principalmente!
Larga tudo e vai para o campo
e larga o campo também, larga tudo!
-- Põe-te a nascer outra vez!
Não queiras ter pai nem mãe,
não queiras ter outros nem Inteligência!
A Inteligência é o meu cancro:
eu sinto-A na cabeça com falta de ar!
A Inteligência é a febre da Humanidade
e ninguém a sabe regular!
E já há inteligência a mais: pode parar por aqui!

Depois põe-te a viver sem cabeça,
vê só o que os olhos virem,
cheira os cheiros da Terra
come o que a Terra der,
bebe dos rios e dos mares,
-- põe-te na Natureza!
Ouve a Terra, escuta-A.
A Natureza à vontade só sabe rir e cantar!

Depois, põe-te à coca dos que nascem
e não os deixes nascer.
Vai depois p'la noite nas sombras
e rouba a toda a gente a Inteligência
e raspa-lhes bem a cabeça por dentro
co'as tuas unhas e cacos de garrafas,
bem raspado, sem deixar nada,
e vai depois depressa, muito depressa,
sem que o sol te veja,
deita tudo no mar onde haja tubarões!
Larga tudo e a ti também!
...


Excerto da «Cena do Ódio»

José de Almada Negreiros



Mário Cesariny

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar

que te atravessou a cintura

tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco


Mário Cesariny

terça-feira, 17 de junho de 2008

Até quando?


Estou sempre, de uma ou outra forma, a comprar amor. Comprava sorrisos quando aqui e ali perdia alguém.
Bastava-me deixar correr as coisas para ser cumulada de elogios. Era efémero, transitório mas ainda assim agarrava-me de forma eterna. Dava tudo. Sempre respeitei toda a gente com a condição de me idolatrarem. E agradava-me desde que permanecesse platónico.O meu problema é antigo, como o de toda a gente: tento sobreviver a um abandono. E se pensasse antes de dizer o que penso, talvez dissesse menos disparates. Ou menos, simplesmente.



Descobri-te num desses instantes inexplicáveis que juntam as pessoas. E hoje, pensando bem, apesar de parecer, de facto, mais poético falar de destino, a simplicidade da nossa relação instaurara-se na circunstância, no acaso, na coincidência.
Construímos a nossa relação com conversas que se prolongavam pelos dias, e as noites foram atingindo proporções quase demoníacas. Estimulavas-me com os teus olhos e a tua boca grande, com os teus sonhos tão longe dos meus que me faziam crer nas tuas palavras e nos teus silêncios.
Era incapaz de trocar esta paixão pelo amor. Queria-me disponível para o novo e o imprevisto, para a imensidão da vida.
Mas eu não sabia nada. Nunca se sabe nada aos 20 anos.
Parecia-me faltar uma eternidade para a solidão e tu dizias sempre qualquer coisa "seja o que Deus quiser" enquanto me seguias na imensidão do desconhecido. Mas eu amava-te por te dispores a renunciar à ideia de alma gémea, como a colocar o teu território à disposição da minha felicidade.
E amava-te por me conheceres tão bem, por saberes que a minha crença de estar sozinha era apenas mais uma extravagancia que tinha que ver com tudo aquilo que não pude, que não consegui, com tudo aquilo que me faltava, que me deram a mais ou a menos.

Pensava ter o resto da vida para te encontrar e ganhar juízo. Mas não quero ser uma dessas pessoas que vive sem marcar ninguém e que morre sem deixar saudades.